‘Acordo UE-Mercosul deve ser baseado na confiança mútua, não em ameaças’, diz Lula
- 17 de julho de 2023
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) criticou nesta segunda-feira (17) o protecionismo da União Europeia frente ao acordo com o Mercosul e disse que o pacto entre os dois blocos econômicos precisa ser baseado “na confiança mútua, não em ameaças”. A declaração foi feita na abertura da cúpula que reúne países da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) e da União Europeia, em Bruxelas, capital da Bélgica.
Queremos assegurar uma relação comercial justa, sustentável.
“A defesa de valores ambientais, que todos compartilhamos, não pode ser desculpa para o protecionismo. O poder de compra do Estado é uma ferramenta essencial para os investimentos em saúde, educação e inovação. Sua manutenção é condição para a industrialização verde que queremos implementar”, completou.
Atualmente, o acordo está em fase de revisão, mas há entraves na questão ambiental e em compras governamentais. Recentemente, os europeus propuseram um documento adicional, chamado de side letter, que impõe sanções em caso de descumprimento mas só para o lado sul-americano.
Os países da Europa também querem a garantia de que a intensificação do comércio entre os blocos não vá resultar no aumento da destruição ambiental no Brasil e nas demais nações do Mercosul Argentina, Paraguai e Uruguai. Em contrapartida, o lado brasileiro é a favor de que não haja distinção na aplicação de eventuais sanções, ou seja, que ambos os lados sejam penalizados da mesma forma em caso de descumprimento.
Leia a íntegra do discurso:
“Na última vez que estive em Bruxelas, em novembro de 2021, discursei no Parlamento Europeu, ainda como pré-candidato à Presidência do Brasil. Fiz um apelo pela união de todos os países em prol do futuro do planeta e da humanidade.
Na ocasião, eu disse que, nesta era de tantas incertezas, sobrevive uma certeza ancestral: o ser humano não foi feito para ser sozinho.
Nos primórdios da humanidade, sozinhos seríamos presas fáceis para as feras de então. Duzentos mil anos depois, sozinhos somos ainda mais vulneráveis diante das guerras, das pandemias, da fome, da desigualdade e da crise climática que pode levar a humanidade à extinção.
Hoje, presidente do Brasil, sigo movido pela mesma convicção. E estou certo de que, para além dos fundamentais acordos comerciais, esta Cúpula Celac-União Europeia representa um passo importante na construção do mundo que sonhamos. Um mundo mais solidário, mais fraterno e menos desigual. Que não seremos de construir sozinhos.
Senhoras e senhores.
Quero saudar o trabalho das presidências da Espanha e de São Vicente e Granadinas para a realização deste encontro, que não ocorria havia oito anos.
Um dos primeiros atos de política externa neste meu terceiro mandato foi determinar o nosso retorno à Celac, foro em cuja criação o Brasil teve grande participação.
Desde sua formação, a Celac formou consensos importantes, como a proclamação da América Latina e Caribe como uma zona de paz, em 2014.
Também atuou prontamente durante a pandemia da Covid-19 e não se omitiu face aos desafios da fome e dos ilícitos transnacionais.
Faço aqui uma menção especial às presidências mexicana e argentina da Celac, essenciais para reforçar o papel da região na ordem multipolar nascente.
Os diálogos com União Europeia, China, Índia, União Africana e Associação das Nações do Sudeste Asiático demonstram a pluralidade de interesses de nossa região.
Com a Europa, compartilhamos uma longa história e laços econômicos e sociais.
A cooperação entre as duas regiões deve refletir as realidades e prioridades de ambos os lados do Atlântico.
Para a América Latina e o Caribe, isso se traduz em um enfoque claro na redução das desigualdades e na erradicação da fome e da pobreza.
Temos que encontrar caminhos para superar as assimetrias de desenvolvimento econômico e social.
Iniciativas de mobilização de recursos e investimentos são bem-vindas e devem contemplar transferência de tecnologia e real integração de cadeias produtivas.
Precisamos de uma parceria que ponha fim a uma divisão internacional do trabalho que condena a América Latina e o Caribe ao fornecimento de matéria-prima e de mão de obra migrante, mal remunerada e discriminada.
A convergência entre nossas regiões não se restringe à interdependência entre economias. Ela também ocorre no plano dos valores.
A União Europeia é um exemplo de construção democrática. Seu legado no pós-Segunda Guerra Mundial é a comprovação de que podemos superar as mais profundas desavenças quando há determinação política em torno da paz.
Nossas regiões estão ameaçadas pelo extremismo político, pela manipulação da informação, pela violência que ataca e silencia minorias.
Não existe democracia sem respeito à diversidade, sem que estejam contemplados os direitos de mulheres, negros, indígenas, LGBTQIA+, pobres e migrantes.
Políticas ativas de inclusão social, digital e educacional são fundamentais para a promoção dos valores democráticos e da defesa do Estado de Direito.
A revolução digital traz inúmeras oportunidades, com as novas gerações de transmissão de dados, com a internet das coisas, com a robótica, com as redes sociais.
Populações antes isoladas têm agora a oportunidade de se conectar, de produzir conteúdo, de oferecer e consumir serviços.
Mas há desafios importantes que requerem coordenação de nossos países e de nossas regiões.
É urgente regulamentarmos o uso das plataformas para combater ilícitos cibernéticos e a desinformação. O que é crime na vida real deve ser crime no mundo digital.
Aplicativos e plataformas não podem simplesmente abolir as leis trabalhistas pelas quais tanto lutamos.
A precarização do trabalho precisa ser revertida.
É preciso resgatar uma indústria que seja intensiva em tecnologia e voltada para a sustentabilidade como grande motor da geração de empregos de qualidade.
A Aliança Digital América Latina e Caribe e União Europeia, que recentemente lançamos, permite o avanço na coordenação de políticas públicas, com foco em governança, investimentos e transferência de tecnologia.
A iniciativa do secretário-geral da ONU sobre integridade da informação e a agenda da Unesco sobre regulação de plataformas digitais também constituem aportes fundamentais para o debate multilateral sobre governança.
Queremos assegurar uma relação comercial justa, sustentável e inclusiva. A conclusão do acordo Mercosul-União Europeia é uma prioridade e deve estar baseada na confiança mútua e não em ameaças.
A defesa de valores ambientais, que todos compartilhamos, não pode ser desculpa para o protecionismo. O poder de compra do Estado é uma ferramenta essencial para os investimentos em saúde, educação e inovação. Sua manutenção é condição para a industrialização verde que queremos implementar.
Proteger a Amazônia é uma obrigação. Vamos eliminar seu desmatamento até 2030. Mas a floresta tropical não pode ser vista apenas como um santuário ecológico.
O desenvolvimento sustentável possui três dimensões inseparáveis: a econômica, a social e a ambiental. O mundo precisa se preocupar com o direito de viver bem dos habitantes da Amazônia.
É com esse objetivo que sediaremos em menos de um mês uma Cúpula de Países Amazônicos, em Belém, no coração da floresta.
Senhoras e senhores,
O atual modelo de governança global perpetua assimetrias, aumenta a instabilidade e reduz as oportunidades para os países em desenvolvimento.
No Haiti, temos uma grave crise multidimensional, que não se resolverá caso seja abordada apenas pelas vertentes migratória e de segurança. Sua superação ocorrerá com a mobilização de recursos adequados para projetos de desenvolvimento estruturantes.
A guerra na Ucrânia é mais uma confirmação de que o Conselho de Segurança das Nações Unidas não atende aos atuais desafios à paz e à segurança. Seus próprios membros não respeitam a Carta da ONU.
Em linha com a Carta das Nações Unidas, repudiamos veementemente o uso da força como meio de resolver disputas.
O Brasil apoia as iniciativas promovidas por diferentes países e regiões em favor da cessação imediata de hostilidades e de uma paz negociada. Recorrer a sanções e bloqueios sem o amparo do direito internacional serve apenas para penalizar as populações mais vulneráveis.
Precisamos de paz para superar os grandes desafios que temos diante de nós, e isso implica mudanças sistêmicas profundas. Dividir o mundo em blocos antagônicos seria uma insensatez.
É inadiável reformar a governança global. Esse será um dos principais temas da presidência brasileira do G20, no próximo ano.
As legítimas preocupações dos países em desenvolvimento devem ser atendidas, e precisamos estar adequadamente representados nas instâncias decisórias.
Senhoras e senhores,
Em 2021, quando discursei no Parlamento Europeu, o mundo atravessava uma de suas maiores provações: a Covid-19. A pandemia passou, mas a humanidade parece não ter aprendido a dura lição.
Mantivemos os hábitos irresponsáveis de consumo, incompatíveis com a sobrevivência do planeta. A desigualdade só fez crescer: os ricos ficaram ainda mais ricos, e os pobres, ainda mais pobres.
Segundo relatório da FAO divulgado na semana passada, 735 milhões de seres humanos passam fome.
E, mesmo com todos os sinais de alerta emitidos pelo planeta, ainda há quem negue a crise climática. E mesmo os que não a negam hesitam em adotar medidas concretas.
Em 2009, os países ricos se comprometeram a destinar 100 bilhões de dólares ao ano para os países em desenvolvimento, como forma de compensação pelo mal que causaram ao planeta desde a revolução industrial. Esse compromisso nunca foi cumprido.
Como se não bastasse, a guerra no coração da Europa veio para aumentar a fome e a desigualdade, ao mesmo tempo que elevou os gastos militares globais. Apenas em 2022, em vez de matar a fome de milhões de seres humanos, o mundo gastou 2,24 trilhões de dólares para alimentar a máquina de guerra, que só causa mortes, destruição e ainda mais fome.
Esta Cúpula Celac-União Europeia é também uma forma de dizermos: ‘Basta’. Um outro mundo é possível. Cabe a nós construí-lo, a muitas mãos.
Muito obrigado.”