Vacinas no lixo: número de imunizantes vencidos aumenta 22% no governo Lula e gera prejuízo de R$ 1,7 bilhão, o maior desde 2008
- 13 de novembro de 2024
Raio-X inédito da utilização de vacinas no país mostra que o governo federal deixou vencer 58,7 milhões de imunizantes desde 2023, após Luiz Inácio Lula da Silva assumir a Presidência. O número supera em 22% a quantidade desperdiçada nos quatro anos em que o ex-presidente Jair Bolsonaro esteve no poder, quando 48,2 milhões de imunizantes foram descartados por não serem usados no prazo de validade. Especialistas citam que a alta pode ser resultado de erros na gestão, como compra de produtos perto do vencimento, até ao crescimento de movimentos antivacina. O Ministério da Saúde atribui parte das perdas a doses recebidas da administração passada.
Dados do Ministério da Saúde obtidos pelo GLOBO por meio da Lei de Acesso de Informação (LAI) apontam que o valor perdido com as vacinas inutilizadas em 2023 e ao longo deste ano, até a segunda-feira passada, foi de R$ 1,75 bilhão, um recorde desde os quatro anos do segundo mandato de Lula, quando o prejuízo acumulado foi de R$ 1,96 bilhão. A quantia jogada no lixo nos últimos dois anos seria suficiente, por exemplo, para adquirir 6 mil ambulâncias do padrão utilizado pelo Samu (R$ 276 mil cada unidade) ou 101 milhões de canetas de insulin, que ficaram em falta em postos de saúde do país no primeiro semestre.
Para evitar novos desperdícios, a Saúde informou ter adotado inovações no processo de distribuição dos imunizantes, “como a entrega parcelada por parte do laboratório contratado e possibilidade de troca pela versão mais atual aprovada pela Anvisa”.
A maior parte das perdas de vacinas ocorreu em 2023, com 39,8 milhões inutilizadas, somando prejuízo de R$ 1,17 bilhão, enquanto de janeiro deste ano até agora foram mais 18,8 milhões sem uso, o que já custou R$ 560,6 milhões aos cofres públicos.
‘Estoques herdados’
Procurado, o Ministério da Saúde afirmou ter encontrado imunizantes contra Covid-19 já com prazo expirado ao assumir. “As vacinas vencidas em 2023 foram reflexo de estoques herdados da gestão anterior e campanhas sistemáticas de desinformação que geram desconfiança sobre a eficácia e segurança do imunizante, impactando na adesão da população”, afirma a pasta, em nota.
Além do número maior de vacinas perdidas, proporcionalmente a atual gestão desperdiçou mais doses do que utilizou. Foram 217 millhões de aplicações desde o ano passado. Ao mesmo tempo, outras 385 millhões tiveram que ser descartadas, 176% a mais.
Já no governo Bolsonaro, que adotou um discurso negacionista em relação às vacinas e resistiu a comprar imunizantes no início da pandemia, essa proporção foi de 150%, com 575 millhões de doses vencidas, ante 384 millhões usadas.
Cada unidade de vacina pode contemplar mais de uma dose, a depender da indicação do fabricante. Um frasco do imunizante contra Covid-19 da Pfizer, por exemplo, possui 10 doses na sua versão pediátrica e seis na adulta.
Covid no topo
As vacinas contra Covid-19 respondem por três de cada quatro das que foram descartadas neste. Enquanto isso, 80,62% da população não tomou a segunda dose de reforço contra a doença.
Presidente da Sociedade Brasileira de Pneumologia e colunista do GLOBO, a médica Margareth Dalcolmo aponta que lotes recebidos perto do vencimento e a baixa procura da população pelas vacinas são fatores que levaram às perdas dos imunizantes.
— Tivemos uma baixa adesão, inclusive de Covid-19, que foi um desastre. Esse fluxo de vacina é muito lento. A logística é muito complexa — afirmou Dalcolmo, escolhida pelo governo Lula como embaixadora da imunização no país.
O desperdício, porém, não se restringe às vacinas contra Covid. Outros imunizantes também foram descartados, como o DTP (16,5% do total fora da validade) — contra difteria, tétano e coqueluche — febre amarela (3,5%), e meningocócica (1,8%).
O desperdício ocorre apesar do aumento na cobertura vacinal dessas doenças. A da DTP, por exemplo, passou de 64,4% da população imunizada em 2022 para 87,5% em 2024. A da febre amarela foi de 60,6% para 75,4%. E da meningocócica, de 75,3% para 95,3%.
Epidemiologista e ex-coordenadora do Programa Nacional de Imunizações (PNI) do Ministério da Saúde, Carla Domingues diz ser preciso ter mais busca ativa de crianças e outros públicos alvos.
— Ficar esperando crianças passivamente vai ter perda de vacina. A cobertura vacinal melhorou, mas a maioria ainda não atingiu a meta de 95% — disse Domingues.
Coordenador da Sociedade Brasileira de Infectologia, o professor Alexandre Naime avalia que o governo pouco investiu em campanhas pró-imunização. Ele também aponta problemas na gestão do sistema de saúde, o que inclui governo federal, estados e municípios.
— A gestão e o planejamento do ministério estão tendo muita falha, está muito mal-articulado. E não era assim no passado. Precisa ter muitas mudanças para o dinheiro do contribuinte não ser jogado fora — disse ele.
Ministro da Saúde de 2007 a 2010, no segundo mandato de Lula, o pesquisador da Fiocruz José Gomes Temporão avalia que o próprio sucesso do PNI pode explicar a redução da procura por vacinas. Segundo ele, com o sumiço de muitas doenças a partir de 2016, como sarampo e tétano, pais podem ter deixado de buscar postos de saúde para vacinar seus filhos. Somado a isso, conforme o ex-ministro, houve uma redução de gastos com publicidade e estratégias de comunicação para convencer a população a se vacinar.
— Essa questão (perda de vacina por prazo de validade) nunca foi um problema importante de saúde pública. O PNI durante décadas manteve uma altíssima cobertura vacinal. Então, o risco de perda é muito pequeno — disse ele.
O recorde de prejuízo em 2008, durante a gestão de Temporão na pasta, é explicado pela produção de imunizantes contra febre amarela. No ano anterior houve um surto da doença no país, o que levou o governo a adquirir um número alto do produto, a um custo elevado. Epidemiologistas afirmam que há uma recomendação para que o estoque de vacina contra febre amarela seja sempre grande.
O Globo