Para Silvio de Abreu, novelas da Globo ficaram ‘amadoras’: ‘Quinta categoria’

  • 18 de dezembro de 2024

RESUMO: Diretor de Teledramaturgia da Globo entre 2014 e 2020, Silvio de Abreu faz duras críticas às novelas atuais da emissora. Para ele, as produções não têm história. E os cortes de custos reduziram também a qualidade de elenco, direção, figurinos e iluminação. ‘Os cenários são de novelinha de quinta categoria’, diz

Aos 81 anos, curtindo uma aposentadoria (talvez provisória), Silvio de Abreu quase não assiste mais a novelas. Afinal, esse foi seu ofício durante quase seis décadas, como ator e, principalmente, como autor. Escreveu obras do quilate de Guerra dos Sexos (1982), Cambalacho (1986), Rainha da Sucata (1990), A Próxima Vítima (1995), Belíssima (2005)… E ainda comandou a Teledramaturgia da Globo nos seis anos que antecederam a pandemia. 

Contudo, ele abriu uma exceção e viu alguns capítulos de Garota do Momento, Volta por Cima e Mania de Você. “E o que reparei? Que tudo é inferior ao que era feito anteriormente”, dispara.

A seguir, os principais trechos de entrevista exclusiva em que Abreu fala do atual momento das novelas da Globo, das transformações pelas quais a TV aberta vem passando, dos erros que levaram Mania de Você ao fracasso e de sua expectativa para o remake de Vale Tudo, grande aposta da emissora para 2025, quando completa 60 anos:

‘Hoje tudo é inferior ao que era anteriormente’

“São vários fatores [para a queda de audiência]. Primeiro é que, na pandemia, as pessoas começaram a descobrir o streaming. E essa ideia de você parar tudo o que está fazendo numa determinada hora para assistir novela também caiu. Só as pessoas que não têm muito o que fazer na vida é que vão todo dia, àquela hora, sentar para assistir.”

“E também, você não sabe [mais] onde as pessoas assistem. A não ser que eu esteja enganado, a audiência [medida pela Kantar Ibope] vem daquele horário [em que a novela é transmitida]. Então, naquele horário, 21% ou 22% assistem. Fora daquele horário, as pessoas devem assistir em outros veículos. Assistem no streaming, provavelmente assistem no Globoplay, assistem só o trecho que interessa. É um estudo que precisa ser feito. Porque o Ibope já não abrange tudo, está defasado.”

“As razões pelas quais as audiências estão baixas têm que ser vistas em uma análise mais ampla de mercado, não artisticamente. Artisticamente, eu acho que a coisa fica muito clara. Eu não tenho visto as novelas, mas, a partir da hora que você me convidou para falar disso, eu fui assisti-las. As três novelas que estão no ar. E o que reparei? Que tudo é inferior ao que era feito anteriormente.”

Primeiro, os investimentos financeiros devem ser muito menores. Eu não tenho ideia de quanto, mas muito menores, porque os cenários são muito ruins. Os cenários que você vê hoje nas novelas, exceto a das nove, são cenários de novelas que os outros canais faziam, bem inferiores. Os cenários são de novelinha de quinta categoria, são só paredes.

“Você não vê [cena] externa, quase não tem. É tudo dentro de um cenário, é tudo na cidade cenográfica. E as cidades cenográficas são muito inferiores às que a gente tinha antes. A iluminação é chapada, não tem nenhum estudo maior de iluminação, é tudo muito lavado, você não tem um degradê de luz pra criar um clima dentro de uma cena.”

‘Novelas não têm história e sofrem censura’

“Os figurinos são a mesma coisa. Me pareceu tudo muito simplesinho, muito trivial. Não tem nada que seja uma coisa interessante de assistir ou que vá causar algum comentário, algum ruído. Além dessa parte toda, você tem um texto que é muita cena de bate-papo, não tem uma história.”

“Atualmente, o que as novelas não têm é uma história. Elas têm cenas. Uma cena em que as pessoas falam um monte de coisas, e vai para outra cena. Não tem uma história que engancha, que vai engatando uma cena na outra, que vai formando uma curiosidade, uma cadeia, uma emoção, e que você não pode deixar de assistir amanhã. Isso não tem mais.”

“Hoje tem comercial em qualquer lugar. A gente tinha uma preocupação de a cada 15 minutos fazer um comercial, para que a pessoa não saísse da frente [do televisor], ficasse esperando. E o final da novela também não tem mais gancho. Não tem mais gancho porque não tem narrativa, não tem história.”

“Quando a gente fazia novela nos anos 1980, 1990, 2000, elas tinham uma história, e os personagens serviam àquela história. As novelas hoje são pessoas falando, falando coisas triviais: ‘Não vou na festa’, ‘vou na festa’, ‘não quer casar com fulano’, ‘não quer casar com beltrano’. Antes, talvez os temas até fossem parecidos, mas a qualidade do que se falava, a profundidade que os autores tentavam atingir, era muito maior.”

Além disso, você tem um elenco e você não reconhece ninguém. E esse alguém que você não conhece também não tem experiência. Então, a cena não cresce. O diálogo é medíocre, a atuação é medíocre, e quando você coloca um ator de mais experiência, ele diminui a capacidade dele pra não entrar em confronto com o outro que é pior. Porque representar é um jogo, você atira a bola, e o outro atira de volta para você, e você cria um clima baseado em emoção.

“E onde está essa emoção? Você assiste à novela e não tem nenhuma emoção, não é engraçada, não é triste, não é interessante, não é nada. É um monte de gente sem talento falando. Agora a culpa é de quem? É deles [atores e diretores]? Não, eles estão fazendo o que podem fazer.”

Beatriz damy/tv globo

Cena de Garota do Momento

Cena de Garota do Momento: cenários das novelas estão mais pobres

‘Diretores são cobrados por quantidade’

“A direção também não é uma direção criativa, é uma direção que grava e coloca no ar, porque me parece que eles têm cada vez menos tempo para gravar. Eles são cobrados por eficiência, por quantidade, não por qualidade.”

“Então o que você vê são cenas de dois [plano e contraplano]. Mas as outras novelas não tinham cenas de dois? Tinham várias. Mas eram escritas por autores que faziam diálogos melhores. Um diálogo de duas pessoas de Gilberto Braga [1945-2021] é uma obra-prima. Manoel Carlos, Benedito Ruy Barbosa, é a mesma coisa. São pessoas que têm o que dizer.”

“Quando você tem duas pessoas e são dois atores, Raul Cortez [1932-2006] e Antonio Fagundes, você presta atenção. Porque eles estão te dando uma emoção. Quando você põe Paulo Autran [1922-2007] e Fernanda Montenegro juntos, eu nem preciso fazer uma cena maravilhosa, porque eles vão fazer a cena bem. Quando você não tem nem o texto, nem a direção, nem o ator, como você vai fazer? Como é que a pessoa vai se interessar?”

Todos os autores e diretores são incompetentes? Não é isso que eu quis dizer. Eu estou dizendo que eles todos estão passando por uma modificação. Eu não sei que problemas os autores hoje enfrentam dentro da TV Globo. Eu não sei o que eles podem fazer ou o que eles não podem fazer.

“Eu tenho recebido muito de telefone, reclamam muito dessa censura. E eu vou dizer censura porque é sobre qualquer tipo de assunto, é o politicamente correto. A TV está errada de fazer isso? Não. Ela tem seus princípios e valores, mas ela tem que ver de que maneira isso vai ser feito, para que não prejudique a narrativa da história.”

‘Produção da Globo hoje é amadora’

“Quando uma empresa como a Globo manda embora todo o seu estafe e só contrata gente que está começando, o resultado só pode ser amador. É o que está acontecendo. Por quê? Como era a TV Globo? A Globo era como uma grande universidade, um aprendia com o outro.”

“Desde que ela começou, em 1965, as pessoas foram repassando o seu conhecimento umas para as outras. Eu aprendi com o Cassiano [Gabus Mendes, 1929-1993], com a Janete Clair [1925-1983]. O Gilberto Braga aprendeu com a Janete Clair. O Carlos Lombardi e o João Emanuel Carneiro aprenderam comigo.”

“A gente tinha uma curadoria de texto que lia todos os capítulos e opinava sobre aquilo. Não é que interferia para mudar. Opinava quando via algum ruído que poderia provocar alguma coisa errada dentro da narrativa da novela. E hoje não tem mais isso.”

“As pessoas entregam os capítulos, e [a Globo] só verifica se tem alguma coisa politicamente incorreta. Então, tem muito mais uma censura sobre o que é ou não apropriado se dizer para não ofender fulano, ciclano, beltrano ou essa ou aquela religião ou etnia. Não tem um acompanhamento de dramaturgia.”

E esse acompanhamento de dramaturgia é essencial, porque muitas vezes você tem um autor experiente como o João Emanuel Carneiro, de comprovado talento, e ele pega caminhos errados, como pegou, e aí não tem conserto, a não ser que você tenha uma curadoria especializada pra dizer: ‘Tá errado aqui, tá certo ali, vamos por aqui ou vamos por ali’. Não é que essa pessoa sabe mais. É que essa pessoa, não estando envolvida com o processo criativo, terá uma visão muito mais clara. O autor não vai saber ver o seu erro.

“Eu digo porque passei por isso muitas vezes e, graças a Deus, eu tinha o Gilberto Braga, o Daniel Filho, tinha gente que sabia ler e falava: ‘Oh, você tá indo errado por esse caminho, vamos por ali’. Eu ia. E fiz isso com muitos autores, fiz isso com o Walcyr [Carrasco], fiz isso com a Gloria Perez. Fiz isso com todos os autores com quem eu trabalhei lá, era a minha função, né? Não estou falando que resolveria o caso, mas que essa pessoa deveria existir.”

“Antigamente, existia disputa entre os profissionais para ver quem fazia melhor. Sempre que tinha uma novela nova, a equipe toda queria fazer melhor do que a novela que acabou. Isso era muito estimulado dentro da empresa.”

“Você tinha parâmetro, tinha que fazer o capítulo de tal tamanho, tinha assuntos com os quais não podia lidar. Cada vez que aparecia um desses assuntos, você tinha que brigar para fazer, mas, a partir da hora que tudo estava acertado, você entregava seu script, ninguém mexia.”

“Não é o que acontece hoje. Hoje, o capítulo vai e volta, porque tem que cortar isso, tem que cortar aquilo, isso não pode, aquilo não deu para gravar porque choveu, tem que tirar cena fora. Tudo agora virou em função da produção, quem manda é a produção. Mas isso não é um defeito da Globo, não. Isso é um defeito do streaming também. Porque era assim também na HBO. Foi uma das razões porque eu saí.”

‘Globoplay é inimigo da TV aberta’

“Qual vai ser o resultado disso? Eu não sei. Está se formando uma nova maneira de fazer novela, que não é aquela que a gente viu. Se isso vai dar certo, se isso vai resistir 50 anos, como a gente resistiu, se vai ser bom ou ruim, eu não sei. Mas é um começo.”

“E vai mudar, sem dúvida nenhuma. Está mudando a maneira de as pessoas assistirem a esse produto. E o que é perigoso é que é numa época em que a concorrência é muito mais acirrada do que era quando a gente fazia.”

“Então, dizer que a novela está perdendo o público não é verdade. A novela está se modificando. O que fazer com que isso? Primeiro, eu acho muito difícil você conseguir segurar as pessoas num determinado horário se elas podem assistir em qualquer horário, isso é uma coisa irreversível.”

“Como a novela é uma coisa pra fixar a audiência todo dia na mesma hora, o próprio Globoplay vai contra esse hábito. O Globoplay é uma facilidade para o telespectador, mas é um inimigo da TV aberta, porque nele eu posso ver na hora que eu quiser.”

ReproduÇÃO/tv globoChay Suede em Mania de Você

Apesar de Chay Suede, público não comprou a trama de Mania de Você

‘Público não acreditou em Mania de Você’

“Especificamente sobre a novela do João Emanuel Carneiro, eu acho que ele armou aquele crime [o assassinato de Molina, vivido por Rodrigo Lombardi] de maneira completamente inverossímil, as pessoas não acreditaram. Os personagens tomaram atitudes erradas, o mocinho fugiu, a mocinha não denunciou o vilão, não houve conflito, logo não ia resultar em nada, estava errado como narrativa.”

“E essa história de fazer novela em que todo mundo muda o tempo todo não funciona. As pessoas não mudam assim, a pessoa pode mudar de atitude, mas tem que ter uma razão para isso.”

O telespectador tem que se identificar com o personagem, ou para gostar ou para não gostar, mas ele tem que acreditar naquela pessoa. Colocar personagens que às vezes são bons, às vezes são ruins [não funciona]. Isso não é humano. Não sendo humano, não é crível. Não sendo crível, eu não tenho porque assistir.

“Qual é a história dessa novela? Eu não sei. Quando você faz aquele crime, e depois do crime um personagem chega pro outro e fala: ‘Foi você que matou, eu vou te denunciar, você tem que fugir’, e o outro não discute, não fala nada e foge? E a mocinha foge com ele e vão pra um hotel. O delegado prende a mocinha e a mocinha, que ia ser violentada pelo vilão que foi morto, não fala nada? Não diz assim ‘Escuta, vocês estão perseguindo o cara errado’?”

‘Futuro da TV aberta é o público mais pobre’

“A TV aberta está procurando ficar só com o público [das classes] CDE. Cada vez mais só vai ver TV aberta quem não tiver outra opção. Isso em termos de publicidade também é ruim, mas é o futuro da novela na TV aberta, vai ter que se contentar com esse público.”

“No streaming, não. Pode fazer novela. Mas também precisa ser outra a maneira de fazer, lançando um bloco de capítulos por semana. O gênero novela vai subsistir, seja no streaming, seja onde for, porque é um gênero que as pessoas gostam, como está acontecendo agora com os doramas e com a novela turca.”

“O que que está faltando? Ter boas histórias. Por que é que a novela turca está fazendo sucesso? Porque são boas histórias. Então o que falta é uma boa curadoria pra você descobrir boas histórias.”

‘Vale Tudo: Risco refazer o que deu certo’

“Vale Tudo é uma boa história, mas depende de que maneira vai ser feita. Acho difícil uma novela que já é tão vista, tão falada, já foi exportada, ter um grande impacto agora, porque as pessoas já conhecem a história. Mas isso não é uma sentença.”

“Eu tenho muito medo porque fiz um remake que não deu certo, que foi Guerra do Sexos [2012]. E por que é que não deu certo? Era ruim, xingava? Não, é porque as pessoas estavam acostumadas com aqueles outros atores [Fernanda Montenegro, Paulo Autran], que eram excelentes, não tinha por que mudar.”

“Quando você pega uma história que não deu certo e faz melhor, ótimo. Quando você pega uma novela que deu certo, que todo mundo adorou, que foi um baita sucesso, você vai fazer de novo e vai mudar, pra quê? Eu, particularmente, se eu fosse diretor, não faria. Não sou contra remake, mas vai dar certo? Não tenho a menor ideia, é um risco.”

Compartilhe

Comente