Popularidade de Lula começa a cair no Nordeste, reduto histórico do PT
- 5 de abril de 2024
Na última quinta-feira, 4, o pernambucano Luiz Inácio Lula da Silva inaugurou uma obra simbólica em Arcoverde, cidade no sertão do seu estado natal. A nova estação, que é parte da chamada Adutora do Agreste, um braço da transposição do Rio São Francisco, irá levar água a 68 municípios de uma das regiões mais secas do país. No dia seguinte, estava previsto na agenda outro destino emblemático: a vistoria de obras da Ferrovia Transnordestina, que irá ligar o porto de Pecém, no Ceará, ao Piauí, de onde se conectará à Ferrovia Norte-Sul. A recente ida ao Nordeste é só mais uma na extensa agenda do petista na região. Ela inclui dezoito viagens em 2023 e cinco neste ano — nenhuma outra parte do país recebeu tantas visitas dele. Mas o movimento é compreensível: tradicional trincheira da esquerda, o eleitorado nordestino dá mostras de que a simpatia com Lula e o governo já não é mais a mesma de outros tempos.
A constatação da existência de rachaduras na muralha vermelha vem de todo lado. Pesquisas recentes de três institutos (Ipec, AtlasIntel e Paraná Pesquisas) mostram que a aprovação ao terceiro mandato do petista recuou acima de dez pontos no Nordeste (veja os quadros). Outras três sondagens mostram que a corrosão dessa boa vontade avançou bastante nas três maiores cidades da região: Fortaleza, Salvador e Recife. Na capital cearense, a insatisfação com o governo cresceu dezessete pontos em um ano, segundo o Paraná Pesquisas.
Embora Lula ainda tenha a aprovação da maioria do eleitorado da região, a oscilação negativa não deixa de ser preocupante, ainda mais a menos de seis meses de uma eleição municipal que Lula e o PT consideram estratégica. Em 2016, ano em que teve seu pior desempenho eleitoral por causa da Lava-Jato, o PT conquistou apenas uma capital, Rio Branco. Na disputa seguinte, não conseguiu vencer em nenhuma, algo que não acontecia desde a sua fundação. Neste ano, a expectativa é lançar ao menos 125 candidatos a prefeitos nas cidades com mais de 100 000 habitantes e doze ou treze nas capitais. No Nordeste, petistas vão encabeçar candidaturas em Fortaleza, Teresina, Natal e Maceió, mas em nenhuma delas aparecem na liderança das pesquisas. Em João Pessoa, uma eventual candidatura petista está no campo das possibilidades. A tendência da capital paraibana, assim como em São Luís, Salvador, Aracaju e Recife, é que o PT apoie candidatos de outros partidos. Coordenador do Grupo de Trabalho Eleitoral da sigla, o senador Humberto Costa acha que o partido pode ser competitivo ao menos em Teresina, Fortaleza e Natal, mas para isso precisará do seu principal cacique político. “Contamos com a força do presidente Lula e das lideranças locais, que se somam à do PT, para termos um bom desempenho eleitoral neste ano na região”, afirma.
O PT tem ciência de que um bom desempenho no Nordeste neste ano, ainda que seja em eleições municipais, dará ao partido sustentação política na região daqui a dois anos, quando Lula deverá tentar a reeleição. Não por acaso, o presidente aproveitou a agenda recente na área para tratar dos problemas eleitorais. No Recife, encontrou-se com o prefeito João Campos (PSB) para tentar resolver o imbróglio da vaga de vice na chapa, pleiteada pelo PT. O prefeito, no entanto, resiste. Ele lidera as pesquisas com folga, tem a gestão bem avaliada e é dada como certa não só a sua reeleição, mas a saída do cargo antes do meio do mandato para disputar o governo em 2026. O PT põe na mesa a indicação a vice-prefeito em troca do apoio na disputa estadual. Já no Ceará, Lula e o PT precisam desenrolar um enrosco gigante: cinco nomes são pré-candidatos a prefeito de Fortaleza. A definição deverá ser feita em encontro municipal, sem necessidade de prévia, mas é certo que haverá participação direta de gente muito próxima ao presidente, como o ex-governador cearense e ministro da Educação, Camilo Santana.
A oposição, claro, já sentiu o cheiro de sangue e intensificou a presença no Nordeste. O casal Jair e Michelle Bolsonaro tinha agenda marcada para Maceió na sexta, 5, a mais bolsonarista das capitais nordestinas — em 2022, foi a única que deu mais votos ao ex-presidente do que a Lula. O prefeito, João Henrique Caldas (PL), tentará a reeleição como o candidato bolsonarista. No sábado, a ex-primeira-dama vai receber o título de Cidadã Honorária de Maceió e participará de eventos no PL Mulher, enquanto o ex-presidente se dedicará a articulações com políticos locais. Trata-se de uma agenda que se tem tornado comum nos últimos tempos. O roteiro na capital alagoana é exatamente o mesmo que foi feito em Salvador, no início de março. A peregrinação de Bolsonaro em “solo vermelho” ainda inclui João Pessoa, onde o ex-presidente participará de um evento com o ex-ministro da Saúde Marcelo Queiroga, pré-candidato a prefeito da capital paraibana pelo PL. Segundo outro ex-ministro, Gilson Machado, Bolsonaro ainda deverá visitar em breve as cidades de Recife e Caruaru, ambas em Pernambuco.
Fator com peso enorme em todas as vitórias de Lula nas campanhas presidenciais, a hegemonia da esquerda na região é antiga e foi construída em grande parte pela ação do petista. Em 1993, uma década antes de ser eleito presidente, ele iniciou a primeira Caravana da Cidadania, em que percorreu 48 cidades em sete estados, a maioria no Nordeste, para ouvir as reivindicações da população. A viagem começou em Garanhuns (PE), onde o petista nasceu, e terminou no Guarujá (SP), para onde migrou. A estratégia rendeu ganhos eleitorais e, anos mais tarde, ajudou a consolidar o PT como uma força política no Nordeste. Nos dois primeiros mandatos de Lula, a região experimentou um grande crescimento, impulsionado por políticas públicas, programas de distribuição de renda, obras de infraestrutura e investimentos. Entre 2003 e 2013, o Nordeste teve um índice de crescimento econômico de 4,1% ao ano — acima da média nacional, de 3,3%. No mesmo período, o número de estudantes universitários passou de 400 000 para 1,4 milhão. Em 2013, a região atingiu 13,5% de participação no PIB nacional, o maior percentual da série histórica. Programas como Bolsa Família, Minha Casa, Minha Vida, Luz para Todos e Cisternas ajudaram a aumentar a popularidade do petista nos estados nordestinos. Para além disso, há a identificação do eleitor com a saga de retirante do petista, contada frequentemente por ele em seus discursos até hoje.
Um dos motores da frustração atual por lá é justamente no campo econômico: a expectativa criada pela volta de Lula não se materializou até aqui em uma nova onda de prosperidade. Mesmo com a desocupação em queda no país — 7,8% no primeiro trimestre deste ano —, o Nordeste segue com o maior percentual de desempregados entre as regiões (10,4%). Todos os estados nordestinos têm taxas maiores do que a média nacional — a Bahia tem a maior do país (13,3%), seguida de Pernambuco (13,2%). Além disso, as famílias nordestinas de baixa renda foram as que mais sofreram com a inflação, de acordo com um estudo da FGV. “O segundo semestre de 2023 foi de crescimento zero. Isso complica a popularidade de qualquer presidente, inclusive na sua base eleitoral”, afirma Ecio Costa, professor de economia da Universidade Federal de Pernambuco. “Para o eleitor nordestino, que esperava uma melhora mais rápida, parece que o sonho acabou”, avalia Murilo Hidalgo, diretor do instituto Paraná Pesquisas.
A esse cenário longe do ritmo de crescimento de outrora, soma-se um motivo extra para a queda de popularidade: o desgaste de programas sociais populares, como o Bolsa Família. Além de não representar mais novidade, ele teve o seu poder de compra corroído em parte pela inflação. O ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social do governo, Paulo Pimenta, aponta ainda outro fator: a revisão do cadastro do Bolsa Família, que afetou principalmente o Nordeste, onde 3,7 milhões de beneficiários foram retirados do programa por inconsistência nos dados. “O PT está experimentando uma fadiga em relação aos programas do primeiro mandato. A realidade hoje é diferente da de 2003. Novos problemas pedem novas soluções”, avalia Leandro Consentino, cientista político e professor do Insper.
Economia, no entanto, não é a única área onde os problemas da agenda nacional têm repercussão maior no Nordeste. Outra questão é a segurança pública, que também tira o sono de muitos brasileiros. A região concentra quase metade das cinquenta cidades mais violentas do país, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, e enfrenta ondas de crimes na Bahia e no Rio Grande do Norte, ambos administrados pelo PT. “A população entende as dificuldades do primeiro ano de governo, mas agora quer resultados”, avalia Márcia Cavallari, CEO do instituto de pesquisas Ipec. Existe, ainda, a percepção de que a atual gestão peca por continuar priorizando o discurso de defesa da democracia, que foi valioso em um determinado momento, mas que não consegue sustentar um governo a longo prazo. “O PT evoca continuamente a ideia de que a vitória de Lula salvou a democracia, mas esta compreensão já está consolidada entre o eleitorado. E o governo vem falhando em comunicar com clareza quais são as próximas pautas prioritárias”, afirma Yuri Sanches, diretor de risco político do instituto AtlasIntel.
No governo, aliás, é inegável a preocupação com o quadro. Em público, no entanto, a estratégia mais adotada é seguir a ordem do chefe e afirmar que o “tempo de amadurecimento dos frutos plantados ainda vai chegar”. “As pesquisas revelam preocupação, claro, mas precisam ser mais bem decodificadas”, entende o ministro do Desenvolvimento Agrário, Paulo Teixeira. À frente de uma das pastas mais engajadas em atender ao Nordeste, ele cita ações com capacidade para reverter o quadro, como o programa Sertão Vivo, que tem a meta de investir 1,8 bilhão de reais, inicialmente, para financiar projetos de 430 000 famílias no semiárido nordestino. Outra aposta é na renegociação das dívidas dos pequenos agricultores a partir de uma espécie de “Desenrola Rural”. Há expectativa também sobre novos programas e ousadas promessas para a educação, área na qual estados como Ceará, Pernambuco e Piauí têm virado referência para o país. A principal vitrine é o Pé-de-Meia, que incentiva a permanência do aluno do ensino médio na escola mediante uma bolsa mensal. Lula também anunciou a meta de 100 novos institutos federais até 2026, dos quais 38 serão no Nordeste. “São políticas efetivas que, claro, vão impactar”, avalia o ministro da Educação, Camilo Santana. Para Paulo Pimenta, a alta expectativa do eleitorado com a vitória em 2022 pode ter resultado em frustração. “Obtivemos um patamar de apoio muito alto no Nordeste e temos clareza que, quanto maior o apoio, maior é a expectativa. Aos poucos, o trabalho do governo vai aparecer mais”, confia.
Quando chegou ao poder pela primeira vez, na eleição de 2002, Lula foi aclamado por 62% dos eleitores do Nordeste na disputa contra José Serra (PSDB). Na eleição seguinte, contra outro tucano, o seu hoje vice, Geraldo Alckmin, levou 77% dos votos na região, mesmo desgastado pelo mensalão. Desde então, o PT sempre teve em torno de 70% de apoio, inclusive na derrota de Fernando Haddad para Bolsonaro em 2018, quando Lula estava preso. Os sinais de descontentamento devem, de fato, preocupar Lula. Até porque é quase certo que seu principal adversário em 2026 virá do bloco de governadores do Sul-Sudeste, que cada vez mais atua de forma coesa e com uma pauta nacional. Nesse duelo que se avizinha, as primeiras trincas que surgem na histórica fortaleza petista são algo a não ser ignorado.