PIB robusto, mas crise fiscal: por que a economia do país dá sinais contraditórios
- 6 de dezembro de 2024
Em um intervalo de poucos dias, o governo Lula colheu notícias antagônicas na economia. Na terça-feira 3, a divulgação do produto interno bruto (PIB) do terceiro trimestre saiu melhor do que qualquer encomenda do presidente. O crescimento no período chegou aos 4% na comparação com o ano passado e completou o notável feito de quinze trimestres seguidos de alta. Os sinais positivos vieram se somar a uma informação da sexta-feira anterior, 29 de novembro, quando os dados do mercado de trabalho mostraram que a taxa de desemprego caiu a 6,2% em outubro. É o menor nível em mais de uma década, ajudado tanto pela força da economia quanto pelo crescimento rápido dos novos formatos de ocupação que estão vindo com a tecnologia, como os trabalhos ligados aos aplicativos de transporte e entrega.
Nem parece o mesmo país onde, na quinta-feira 28, a bolsa de valores derreteu, os juros futuros dispararam e o dólar ultrapassou os 6 reais pela primeira vez na história do Real. Isso se deu depois que o governo anunciou um aguardado mas, afinal, frustrante e desastrado pacote de contenção de gastos. “Crescer é sempre uma boa notícia, a má é que o governo não está fazendo a leitura correta disso”, diz o economista-chefe da gestora financeira G5 Partners, Luis Otavio Leal. “A economia está claramente rodando acima de seu potencial, e o governo não se mostra decidido a resolver isso.” Só na bolsa de valores, a saída de capital estrangeiro soma 25 bilhões de reais neste ano, até novembro, e se encaminha para a maior perda de capital desde pelo menos 2016, segundo um levantamento da consultoria Elos Ayta.
São tendências opostas que, aos desavisados, podem causar estranheza. Por que investidores querem sair e não entrar em um país que cresce em ritmo bom? Ou: por que uma economia que está acelerando precisa poupar? A resposta, de acordo com economistas tanto do mercado financeiro quanto da academia consultados por VEJA, passa pelo fato de que boa parte do crescimento dos últimos anos foi anabolizada por estímulos saídos dos cofres públicos. Eles ajudam o consumo e até cumprem um papel social, mas estão deixando uma conta bem cara, expressa na dívida pública e nos gastos exorbitantes com juros que crescem com ela. O problema é que esse modelo de crescimento, já tão conhecido do Brasil, financiado com endividamento e inflação, não se sustenta por muito tempo. “Já vimos esse filme antes, e isso se chama voo de galinha”, diz Helio Zylberstajn, professor sênior da faculdade de economia da Universidade de São Paulo. “Há vários sinais de que tanto a economia quanto o mercado de trabalho estão no limite. Sem indicações claras do governo para incentivar os investimentos, isso começa a pressionar os preços.”
O PIB cresceu 0,9% no terceiro trimestre comparado ao segundo e 4% ante o mesmo trimestre do ano passado. O resultado veio acima das expectativas gerais e obrigou, mais uma vez, a uma leva de revisões nas projeções para 2024, para um número cada vez mais perto de 3,5%. Será o quarto ano seguido em que o PIB cresce mais de 3%, sendo que nos dois primeiros o que houve foi reação às perdas na pandemia. Recuperando-se de anos recentes ruins, a indústria de transformação e a chamada formação bruta de capital fixo, que contabiliza os investimentos em maquinário e infraestrutura, chamaram atenção ao crescer 4% e quase 11%, respectivamente. Mais uma vez, contudo, é o consumo que está ditando o ritmo. “O PIB está baseado no emprego forte e nas políticas de renda do governo, que cresceram muito desde 2023”, diz Cláudio Hamilton dos Santos, que conduz os estudos macroeconômicos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. “Isso aumenta o consumo das pessoas, o que puxa os serviços, que são intensivos em mão de obra e puxam, também, o emprego.” Na comparação anual dos dados do terceiro trimestre, o consumo das famílias subiu 5,5%, e os serviços, que são mais de 60% do PIB, cresceram 4%.
O que também chamou atenção foi o desempenho das importações — boas para os países que venderam para nós, mas ruins para o PIB brasileiro, já que são subtraídas da conta final. Na comparação com o terceiro trimestre de 2023, elas avançaram 18%. “É um dos vários alertas de que a economia está batendo no teto de sua capacidade”, diz Margarida Gutierrez, professora do Coppead, a escola de negócios da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Estamos crescendo mais do que somos capazes de produzir, e é isso que as importações complementam.”
O Bolsa Família turbinado e os reajustes maiores para o salário mínimo — e, com eles, das aposentadorias, do abono salarial dos mais pobres e do Benefício de Prestação Continuada — são algumas marcas do retorno de Lula que estão crescendo velozmente desde o ano passado. São transferências que entram no bolso das pessoas e na cadeia do consumo, mas que também puxam a inflação e dilatam o rombo nas contas do governo. Em outubro, a inflação em doze meses chegou a 4,6%, acima, inclusive, do máximo de 4,5% ao ano que deveria respeitar. Já o déficit público, que é quanto o governo gasta a mais do que arrecada, acumula 64 bilhões de reais desde janeiro e retroalimenta a dívida, que cresce ainda mais depressa do que a economia — e, por isso, já subiu de 71% para 78% do PIB de 2023 para cá.
Atacar a parte descontrolada dessas despesas era o objetivo do pacote anunciado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, na semana passada. O projeto promete criar um teto para o reajuste do salário mínimo e enxugar benefícios sociais. Junto, ele adiantou, por motivos políticos, o anúncio de uma reforma ainda confusa no imposto de renda dos mais pobres (isenção para quem ganha por mês até 5 000 reais) e dos mais ricos. As medidas de corte, porém, foram consideradas tímidas e acabaram por piorar a percepção do mercado financeiro — de onde vem o dinheiro que financia a dívida que banca os gastos. “É como um carro numa velocidade muito alta e que tem risco de capotar”, diz Armando Castelar, pesquisador da Fundação Getulio Vargas e ex-chefe do Departamento Econômico do BNDES. “O investidor vai querer ser muito bem remunerado para ficar nesse carro.”
A inflação subindo, o mais inexorável sinal de uma economia que está demandando mais do que pode oferecer, já vinha obrigando o Banco Central a voltar a elevar a Selic, a taxa básica de juros do país. A crise nos mercados, que incitou o dólar, coloca um peso adicional sobre os preços e redobra a necessidade de juros mais altos, deixando uma missão especialmente difícil no colo de Gabriel Galípolo, o pupilo de Lula que assume a presidência do BC em janeiro. Até poucas semanas atrás, as expectativas dos economistas eram de que a Selic, hoje em 11,25% ao ano, deveria subir para perto de 13% nos próximos meses. Após o pacote-bomba, há quem diga que a taxa terá de chegar a 14% ou até mais.
Como os juros altos têm efeito recessivo, o resultado é uma desaceleração já encomendada para o ano que vem. Nas estimativas preliminares dos economistas a expansão do PIB vai arrefecer para os 2%, enquanto o desemprego deve se acomodar perto dos 7%. “De algum jeito esse ajuste vem”, diz José Márcio Camargo, economista-chefe do Banco Genial. “Se não for pelos juros, a correção virá pela inflação, o que é muito pior. Ela vai diminuindo a renda real dos trabalhadores e também desacelera a economia”. Seria um fenômeno parecido, lembra Camargo, com o que ocorreu na virada do superaquecimento da economia até 2013 para a profunda recessão que veio em 2015 e 2016, uma passagem traumática e ainda suficientemente fresca na memória de todos os analistas.
A receita estrutural para que o país possa crescer a taxas mais altas, elevar salários e ter juros baixos ao mesmo tempo não tem segredo. Antes de tudo, as contas públicas têm de ser balanceadas. Além disso, é preciso “melhorar o ambiente de negócios, destravar os investimentos e ganhar produtividade”, diz Castelar, da FGV. Os especialistas reconhecem que muito foi feito nesse sentido nos últimos anos, com reformas como a trabalhista, a tributária e vários marcos setoriais. É o que explica o país já estar sendo capaz de crescer mais que o pífio 1% ao ano em que ficou preso na década passada. Mas, para manter o ritmo de 3% ou mais, sem que o crescimento leve a desequilíbrios no futuro, há muito trabalho a ser feito.